ZERO – IGNÁCIO DE LOYOLA
BRANDÃO
EDITORA CODECRI – RIO DE JANEIRO,
1979
Mais se assemelha a um
poema dadaísta de amontoado de coisas que parece não ter conexões. Depois você
vê que há uma conexão. Como se não houvesse coerência, coesão, mas há coerência
e coesão. A coerência e a coesão da subversão. O próprio livro sentiu-se vítima
de insurgência, o próprio autor e também nós, leitores, que se ficarmos calados
podemos ser condenados por omissão. Quando se inicia a leitura, tem-se a vontade
de parar. Desistir por alguns minutos ou horas ou dias, até anos. Mas a
curiosidade – dote de um bom leitor – mantém firme minha persistência. Depois do
terreno arenoso, não vem a bonança. O livro todo é árduo, árido - leitura
dificultosa. Isso não é um ponto negativo, pelo contrário. Sobrevive o mais
forte. Talvez esse seja o mote de José, personagem enigmático, carismático,
atormentador que comunga com vários personagens da literatura brasileira como
Fabiano, de Graciliano Ramos e Macunaíma, de Mário de Andrade.
Aliás, ao ler Zero, lembrei-me
de Mario de Andrade e seu Macunaíma. Um texto truncado, personagens plurais,
comportamentos indecifráveis e angustiantes, heróis e anti-heróis, destruição da
visão romântica do estado de coisa, o caráter sem-caráter. Macunaíma talvez seja
a gênese, Zero, o apocalipse.
Zero é metalinguístico, pois
menciona-se dentro da própria ficção, sendo banido pelos governos autoritários
que vislumbravam imoralidade em seus escritos. Não que não haja imoralidade,
palavras de baixo calão, cenas de sexo selvagem, escatologias. (É bom dizer que
a escatologia de Zero tanto envolve a coprologia, as coisas sórdidas e obscenas
as expressões chulas e fecais como a preocupação do destino do mundo, quase
profético – e toda a literatura deve ter esse misto de mito profecia –
elaborando uma teoria do destino e propósito humano. Mas tudo isso é subjetivo.
Tudo é variável, como poderia dizer o próprio José: depende. O que é tudo isso
se não a essência pura quando se encontra a humanidade distante de seu sentido
ou próximo ao sentido que se constrói diante uma realidade tão imunda. Então
José diz: depende.
Zero não é só profético, é
religioso e as semelhanças com a bíblia não tem nada de coincidência: quando Gê,
Gê é o “messias” que o governo acredita ser comunista (é um comunista),
assassina o dono do bar, rouba o vinho e transforma groselha em vinho para
socorrer o casamento de pobres noivos, quando Rosa persegue uma família e se
guia por uma estrela ou quando o governo manda matar todas as crianças com idade
do filho do Gê, o menino com música na barriga, para matar o filho do
Gê.
O texto também é poético, com
contribuições profundas de versos filosóficos, talvez escritos pelo próprio Zé:
“Inscrição de Privada/ (Grafitti) /Cagar é lei deste mundo/Cagar é lei do
universo/Cagou dom Jorge segundo/Cagou quem fez este verso” p. 31//“Inscrição de
privada:/Neste lugar solitário/Toda valentia se apaga/O mais forte só geme/O
mais corajoso se caga” p.67// “Inscrição de privada/ (grafitti) /Neste lugar
solitário/Todo valente se apaga/Todo homem geme/Todo corajoso se caga” p.
109.
José me lembra Carlos Drummond
de Andrade, ou melhor, o “E Agora José?”. José procura emprego, José procura
mulher, José procura se acertar na vida e não mais borrar as calças, não mais
apanhar de 5 em 5 minutos da polícia ou da polícia política, ou do POPO ou da
POFE ou do POSU (Polícia de Supersegurança) ou do próprio Presidente Militar
Ministro da Guerra e Salvador do Povo estúpido. José vira assaltante, vira
assassino para financiar uma casa para Rosa na Caixa Econômica, José quer
prostituta, José não quer trabalhar, José quer deitar com Rosa – E agora
José?
Talvez a música preferida de
José, ou Zé para os íntimos, seria Fotografia 3x4 de Belchior. Ou “isso tudo
acontecendo e eu aqui na praça dando milhos aos pombos” de Zé
Geraldo
Numa linguagem que denuncia e
caracteriza cada personagem o livro, porque literatura, não deu conta da
normatividade da gramática. Mas é subversão linguística também. Literatura não é
compêndio de gramatiquice embasbacada. Literatura é vida, gramática é lápide. A
narrativa, dos vários narradores presentes, se mistura com pensamentos, desejos
das personagens, onomatopéias, barulhos citadinos, anúncio e propagandas de
televisão, rádio, outdoor, fast-food. Átila, por exemplo, se apaixonava por
todas as garotas de sutiã que apareciam fotografadas nos outdoors. A narrativa é
flash de acontecimento como que se inundando na mente do escritor é derramada na
do leitor e assim parece tudo desorganizado, mas na verdade é organizado e com
tempo, esforço e paciência vai se encontrando conexões. Assemelha-se ao fluxo de
pensamento. Será que o pensamento é assim? O narrador é personagem, depois é
observador. Há mudança constante de tempo e espaço sem prévio aviso como uma
sobreposição contínua de acontecimentos, como fluxo de pensamento sobre muita
coisa. Um misto de conto, romance, novela e poesia, como nós alerta as orelhas
do livro.
Clássico, na minha visão
reducionista de ver as coisas. Acredito que José não gostaria de ser Clássico, e
duvido muito que algum governo possibilite a leitura dessa epopéia nas salas de
aulas sobre suas jurisdições. O negocio é ler escondido no banheiro e quem sabe
a verve poética de Zé não nos contagie e comecemos a pensar. Livro para ser lido
2 vezes na vida e outras 2 na morte.
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